Joias de Papel

13 de dezembro de 2019

Paper Jewels, em tradução literal para o Português, “Joias de Papel”, nasceu com um nome poético que transborda de arte e cultura em suas páginas, além de ser um suporte precioso sobre a história visual da Índia, ilustrada através de mais de 500 cartões postais. O livro, de autoria do colecionador e especialista em cartões postais vintage, Omar Khan, foi co-publicado pela Mapin Publishing e Alkazi Collection of Photography. Empreendendo uma verdadeira epopéia para estruturar Paper Jewels, o autor encontrou colecionadores, pesquisou arquivos, visitou feiras especializadas ao redor do mundo para descobrir cartões postais antigos e conhecer outros estudiosos da área. O projeto levou cerca de dez anos e quatro rascunhos até que Khan, enfim, encontrasse uma maneira agradável de compartilhar suas descobertas e alegrias com um público mais amplo.

O primeiro rascunho da pesquisa começou amplamente focado e organizado em capítulos sobre os estúdios, fotógrafos e artistas que criaram os cartões postais. Mas Khan considerava que estruturar o livro dessa maneira significava deixar de fora muitos cartões postais que eram importantes ou significativos. Quando seu editor, Mapin, sugeriu que ele tentasse organizar o livro por local, cidade ou província, o projeto ganhou outra perspectiva. “Essa nova ordem me permitia focar frequentemente em um ou dois grandes estúdios ou fotógrafos em cada área, além de incluir os trabalhos de outros artistas da região para contar uma história mais completa de como um lugar foi ilustrado através dos seus cartões postais históricos”, comenta o autor. Dessa forma Khan estipulou o objetivo de Paper Jewels que é fazer com que as pessoas possam identificar com facilidade os lugares ilustrados, que aprendam sobre a história desse suporte visual e seu importante papel desempenhado num complexo contexto histórico, econômico e político.

Paper Jewels foi pensado como um catálogo sistemático, ordenado por assuntos, cidades, cada uma relacionada às suas peculiaridades. Os primeiros capítulos tratam das imagens de publicidade e cartões de “Saudações de…”, dos quais, os mais antigos datam de 1892-1896, em seguida há um capítulo sobre Calcutá, onde um fotógrafo austríaco foi o primeiro editor de cartões postais em 1897. Em seguida, a cidade de Varanasi, Benares, entra em foco, onde outro austríaco estava entre os primeiros artistas que pintaram cartões postais da Índia em 1898 e depois encontramos Mumbai, Bombaim, onde a publicação de cartões postais começou na mesma época e continuou ainda em 1899. Em seguida, cada capítulo destaca os cartões postais mais antigos desses locais antes de passar para os mais comuns ou representativos. Para contar a história dessa missão de publicar Paper Jewels, Omar Khan respondeu gentilmente às questões de Correspondance Magazine® e nos segredou algumas descoberta interessantes, quando estava pesquisando os arquivos da Biblioteca Nacional da Áustria, em Viena. Trata-se de um cartão postal enviado pelo famoso escritor austríaco Stefan Zweig, enquanto ele estava em Bombaim, para uma mulher em Viena. Aparentemente, ela acabara de escrever para ele, ou ele acabara de ouvir, que ela estava noiva. Zweig lhe enviou um cartão postal desejando-lhe o melhor e mostrando a Torre do Silêncio, onde os corpos são colocados após a morte para serem comidos pelos abutres. Ele estava tentando dizer algo para ela? Essas e muitas outras histórias peculiares sobre os cartões postais indianos podem ser apreciadas no extraordinário livro Paper Jewels.

Conte-nos um pouco sobre a pesquisa que você fez para esta publicação. Que tipo de assunto era importante para você incluir em “Paper Jewels”?

– Pesquisei muitas coisas em detalhes. Uma delas foram os artistas, como M.V. Dhurandhar, por exemplo, ou Paul Gerhardt, na Ravi Varma Press. Ainda nesse estúdio descobri que dois austríacos, Erwin Neumayer e Christine Schelberger, haviam pesquisado bastante e até traduzido os diários do irmão do pintor Ravi Varma. Em seus diários, há menção à Paul Gerhardt, embora seu primeiro nome não tenha sido dado, apenas a inicial – que eu precisei pesquisar em jornais antigos, um dos quais o mencionava como membro da Sociedade de História Natural de Bombaim. Também fui conhecer Erwin e Christine em Viena e aprendi mais sobre Ravi Varma com eles e nos tornamos amigos. Outro estúdio que gostei de pesquisar foi o Gobindram Oodeyram em Jaipur. Tive a sorte de comprar um álbum de cartões postais dos idos de 1905-06 de um indiano que se dedicava a eles. Essa coleção incluía um cartão postal de seu estúdio e uma organização complexa e a rotulagem de cartões postais de muitas mulheres nautch ou dançantes, rotulados individualmente quanto ao fato de serem destinadas ao público indiano ou estrangeiro. Isso ofereceu uma perspectiva muito interessante sobre os tipos de mercado que até um tipo específico de cartão postal deveria servir. O álbum também incluiu muitos cartões postais religiosos que não foram enviados ao exterior.

Durante essas pesquisas, houve algum evento histórico que você desconhecia e acabou descobrindo através dos cartões postais?

– Os cartões postais faziam parte da história e me dediquei à estudar, tal qual um detetive, suas conexões com o tempo e o lugar, como eles ilustravam certas coisas, expondo e representando a maneira como as pessoas pensavam e sentiam. Tudo isso era importante para mim e parte do motivo pelo qual escrevi este livro. Os cartões postais podem contar histórias únicas, eles não são apenas objetos superficiais e transitórios, quando analisados cuidadosamente um século depois. Descobri, por exemplo, que vários fotógrafos que podem ter servido junto ao exército britânico, trocavam cartões postais dos combatentes da liberdade ou dos eventos sobre a luta pela liberdade e os publicaram, às vezes em segredo. Também foi interessante aprender que os franceses publicaram muitos cartões postais durante a Primeira Guerra Mundial, comemorando os heróicos soldados indianos que lutavam junto com os exércitos aliados, ajudando a libertar as cidades francesas dos alemães. 

Conte-nos sobre a história por trás da publicação de “Paper Jewels”.

– Há quase 30 anos, fui a uma feira de distribuidores de cartões postais em Concord, uma pequena cidade a uma longa distância de minha casa em São Francisco. Fiquei surpreso ao encontrar, quando cheguei no local, caixas e caixas de cartões postais da Índia de há cem anos atrás. Não tinha ideia que eles existiam. Em uma caixa, encontrei o pequeno cartão postal Women Baking Bread e ele imediatamente me transportou de volta para a casa da minha avó na Queen’s Road, em Lahore, onde ela costumava sentar na varanda com uma criada ou uma de minhas tias descascando ervilhas ou rolando a massa para chapatis. Foi um momento proustiano para mim e desde então, iniciei essa jornada de coleta de cartões postais que dura até hoje. Também descobri, depois de muitos anos de pesquisa, que o Women Baking Bread era um cartão-postal raro e extraordinário, provavelmente feito por um pintor alemão que trabalhou na Índia por volta de 1898, e que foi impresso na Ravi Varma Press perto de Bombaim, e é considerado um dos primeiros cartões-postais publicados na Índia.

Como nasceu esse interesse em coletar cartões postais antigos ao redor do mundo?

– Quando iniciei esse projeto e comecei a aprender mais sobre a produção dos cartões postais, os artistas e editores por trás deles, as forças que os tornaram um meio de comunicação tão importante por um breve período na virada do século, vi que eles haviam sido amplamente negligenciados por estudiosos e historiadores. Havia poucos livros sobre o assunto e, certamente, nenhum sobre os cartões postais indianos. Isso me fez querer escrever um livro. Ninguém tentou usar cartões postais indianos de maneira rigorosa para explorar a história visual que eles continham. Queria encontrar uma maneira de trazer o que achei tão interessante sobre essa mídia para um público mais amplo e tentar explicar o que me interessava e o que eles nos disseram sobre o mundo em geral. Os cartões postais eram e são populares por serem destinados ao consumo das massas, portanto, eles devem ser capazes de fornecer uma avenida para o passado que é hoje transmissível.

Quais foram as etapas necessárias para reunir toda essa coleção de cartões postais em torno deste projeto?

– Quase todos os cartões postais do livro são da minha coleção, com duas grandes exceções. Existem alguns, incluindo um assinado pelo grande artista indiano M.V. Dhurandhar, que são da coleção do falecido Michael Stokes, de Kent. Ele era um grande colecionador cuja casa eu visitei depois de muitos anos ouvindo falar dele. Lá descobri que ele tinha não apenas uma cópia do Women Baking Bread, mas outros da série que me ajudaram a determinar o artista e a pesquisá-lo. Ele também tinha esse cartão postal notável da M.V. Dhurandhar, meu artista favorito de cartões postais, da “nova” mulher hindu que Dhurandhar havia enviado a um de seus antigos professores que se aposentara na Inglaterra. Isso deve ter indicado que ele estava particularmente orgulhoso desse cartão postal. Michael Stokes compartilhou generosamente essas imagens comigo. Existem também algumas imagens do álbum de cartão postal da posterior rainha da Inglaterra, Mary, que encontrei no Castelo de Windsor, mostrando muitos dos cartões postais que haviam sido enviados para o filho doente que não pode acompanhá-los durante uma viagem à Índia entre 1905-06.

Em “Paper Jewels” encontramos representados vários assuntos ligados às camadas sociais da India. De que maneira os cartões postais relatavam essa revolução política e cultural?

– Uma das coisas mais interessantes sobre os cartões postais é a rapidez com que eles se desenvolveram como mercadoria nos negócios, na moda e na tecnologia, se adaptando rapidamente na competição pelo gosto do consumidor. Outro fato importante sobre a evolução do cartão postal durante o Raj britânico na Índia foi que, embora o cartão postal fosse utilizado primeiramente como um objeto turístico e colonial, feito por e para estrangeiros, ele também foi adotado por artistas indianos, que o usavam para zombar dos britânicos e foi usado como uma ferramenta na luta pela liberdade. O capítulo final analisa esses cartões postais políticos e o papel efetivo que eles desempenharam no nascimento da Índia e do Paquistão. Aliás, os franceses imprimiram não apenas alguns dos cartões postais mais bonitos da Índia, mas também alguns críticos do imperialismo britânico, os tipos de cartões postais que os britânicos nunca publicaram.

Você acredita que essa evolução dos cartões postais continua crescendo apesar das mídias sociais?

– Os cartões postais eram as novas mídias sociais de seu tempo e resistiram, mesmo que em formato digital, porque se tratam de uma conexão humana. Cartões postais não contêm segredos ou, se eles os contêm, são tratados com muito cuidado. Em uma década, entre 1895 e 1905, o mundo passou de milhões para bilhões de imagens de cartões postais publicadas a cada ano. Realmente era o Instagram de sua época – só que era o primeiro Instagram e o mais significativo de várias maneiras, porque desde então a era da “loucura pela imagem”, como um comentarista citou, só continuou e ficou ainda mais louca. A maneira como tantas forças da sociedade se combinaram para popularizar os cartões postais – turismo, sistema postal e regulamentos, publicidade, guerras – era uma história que também queria fazer justiça, mesmo ao organizar o livro por local.

Qual o grande diferencial de “Paper Jewels” em relação a outros livros sobre a mesma temática?

– Uma diferença entre esse e a maioria dos livros que tratam de cartões postais é que quase todos os modelos foram restaurados profissionalmente em formato digital. Trabalhei com Eric Basir, um especialista profissional em imagens de arquivo em Chicago, para remover evidências de danos, mudanças de cores e outros itens dos cartões postais, para que as pessoas possam vê-los como eram originalmente, mesmo quando mantivemos a mensagem ou carimbo tal e qual apareciam impressos. Senti que isso era necessário a fim de que as pessoas pudessem se deleitar com essa lembrança visual em seu formato original.

Sua pesquisa e coleção são vastas, onde você encontrou todas essas obras de arte para incluir neste livro?

– Encontrei cartões postais de revendedores em todo o mundo, em São Francisco, Nova York, Londres, Viena, onde fui a feiras e comprei diretamente de pessoas especializadas no assunto. Também comprei on line de muitos outros países, incluindo França, Índia, Paquistão, Alemanha, Japão, Áustria. Não há nada como essa caça determinada:entrar em uma feira e saber que há muitas surpresas nas próximas duas ou três horas de exibição e é muito divertido pesquisar on line. O melhor disso tudo é que havia tantos impressos e sempre haverá novas e inesperadas surpresas sobre os cartões postais. Há também alguns específicos que eram muito populares – de fomes e pragas, a Torre do Silêncio Parsi, em Mumbai, ou ainda os enviados do Taj Mahal Hotel, em Mumbai, que eu coleciono por causa das mensagens contidas neles, pelo que as pessoas escreveram e não somente por causa das imagens. Tudo isso significa que há muitas descobertas a serem feitas, e continuo colecionando novos cartões postais quase toda semana.

Além de ser um colecionador apaixonado, qual o seu fato favorito sobre “Paper Jewels” e por quê?

– O livro pesa mais de 2 kg, o que, na minha opinião, é um reflexo do tempo e do esforço que foram alocados para selecionar mais de 500 cartões postais numa amostragem de 10.000, e o enorme esforço das editoras em projetar, ampliar e apresentar essas belas imagens para seus clientes. Um dos fatos mais interessantes sobre cartões postais é que esse era um mundo femininino. A maioria dos cartões postais postados da Índia foram enviados para mulheres, elas ajudaram a definir o gosto pelos cartões postais desde os primeiros tempos de sua criação, geralmente elas eram as responsáveis ​​pelos álbuns, e os estudiosos estão finalmente entendendo o importante papel que as mulheres tem e tiveram no desenvolvimento dessa indústria dos cartões postais, como colecionadoras e compradoras. Isso era verdade na Europa, Grã-Bretanha, Índia. Uma antiga revista austríaca de cartões postais tinha um poema em que alguém alegava que a beleza de uma mulher estava relacionada à quantidade de cartões postais que ela possuía!

O que o público descobrirá especialmente sobre “Paper Jewels”?

– Que os cartões postais revelam uma biografia visual ampla e rica, geralmente colorida, às vezes pintada por grandes artistas e cheia de histórias, se as considerarmos atenciosamente. São portas que se abrem para o passado. Isso vale não apenas para a Índia, mas para quase todo o mundo, especialmente a França, que tinha sua própria tradição de belos cartões postais e ainda hoje tem uma das comunidades mais ricas e ativas de coleta de cartões postais do mundo.

Dentre essas centenas de cartões postais publicados em “Paper Jewels”, quais você gostaria que o público se lembrasse?

– Meu artista favorito no livro é M.V. Dhurandhar, um gênio subestimado em seu tempo. Sua série de cartões postais pintados, muitos deles representando de maneira inteligente e satírica os novos tipos de trabalhadores que a crescente cidade de Mumbai (Bombaim) precisava para sobreviver, são estudos notáveis, equilibrando delicadamente a realidade humana com as demandas do urbanismo. Suas habilidades em dar individualidade a um jardineiro, a um vendedor de frutas, a um alfaiate ou a um peão, mesmo quando ele os interpreta como tipos caricaturais, é algo que poucos artistas de cartões postais na época faziam. Ele era um gênio em trazer à tona a individualidade e o caráter dos chamados “indianos típicos”. Ele também produziu entre 10 e 12 séries de cartões postais contando histórias, de um menino bom e de um menino mau na escola, ou uma empregada bonita entrando em uma casa e criando problemas para um casal, histórias que mais tarde apareceram no cinema antigo, no sentido de que eram peças de moral, que seu editor de cartões postais, Dadasaheb Phalke, pai do cinema indiano, mais tarde também contou de maneira semelhante nos filmes mudos que produziu.

Qual foi a parte mais gratificante de ter empreendido todos esse anos para formatar “Paper Jewels”?

– Ver o livro ser publicado foi muito gratificante, assim como as exposições que resultaram. Em Mumbai, fizemos uma exposição no Museu Bhau Daji Lad para lançar o livro. Duas semanas depois, quando eu estava saindo da Índia após a turnê do livro, passei na exposição e observei as pessoas tirando suas câmeras de celular e fotografando os cartões postais fixados na parede. Senti que isso estava fechando o círculo da história e trazendo de volta à vida o que era uma mídia social original e  colocando-a na arena digital atual. Enviar a alguém uma imagem como uma “saudação implícita” ou com uma mensagem pessoal é uma tradição ainda muito viva mas que se apresenta de forma diferente hoje.

TRADUÇÃO & EDIÇÃO DE TEXTO – Marilane Borges

IMAGEM  – Cortesia do autor Omar Khan e das editoras Mapin Publishing e Alkazi Collection of Photography © Todos os direitos reservados

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